quarta-feira, 3 de março de 2010

Guy Veloso e a diversidade fotográfica

Recentemente, o Canal Contemporâneo recusou-se a publicar um release da exposição de Guy Veloso, fotógrafo documental e que tinha acabado de receber a notícia que obras suas haviam sido selecionadas pela coleção MASP/Pirelli. Penso que a arte, como a política devem ser o exercício do diálogo e não do sectarismo. Por isso escrevi o texto abaixo.

Pela diversidade fotográfica.

Belém é uma cidade que nasceu da diversidade. Fundada na beira do rio Guamá por portugueses, franceses e pernambucanos construiu sua história em meio a grandes conflitos. Conflitos do homem com a natureza e do homem com o homem. Literalmente, cantada em verso e prosa ao longo dos séculos só começou a ter seus registros imagéticos produzidos com mais intensidade através dos viajantes e naturalistas da metade do XVIII e início do século XIX.

Muitos autores passaram por aqui: Spix, Martius, Henry Bates, entre muitos outros. Costumes, frutas, índios e manifestações urbanas foram desenhados e relatados por esses homens. No entanto, foi com a chegada da fotografia que a Amazônia ganhou cada vez mais destaque nos semanários, livros e estudos na Europa. O exótico encantava. A riqueza da borracha deu contornos europeizados para uma cidade cravada no meio da selva. O álbum de fotografia de Fidanza de 1904 é um exemplo da tentativa de vender uma única imagem: a civilização nos trópicos.


Loja de comércio de animais em Belém. Gravura reproduzida do livro The Amazon and Coast. Herbert Simth. A cópia digital aqui utilizada foi retirada da obra "As origens do Museu Paraense Emílio Goeldi. Aspectos Históricos e Iconográficos de Luis Carlos Bassalo, Vera Burlamarqui e Peter Mann.

Faço essa digressão histórica para chamar a atenção do leitor. Contar uma história, escolher fotos para um álbum, fazer um recorte de um tema é uma escolha. É um discurso, é uma possibilidade de leitura. Assim Guy Veloso nos arrebata. Seu caminho, descortina essa separação dura e imediata datada do século XIX: ciência e fé. Os personagens do fotógrafo vivem no século XX e XXI, vivem em grandes cidades da Índia, Espanha e Rio de Janeiro mas também podem ser encontrados nas pequenas vilas do interior do sertão nordestino, localidades no meio da selva amazônica e mais recentemente em pequenos terreiros de candomblé ketu na grande Belém.



Fotografias: Guy Veloso

Essa tradição documental fotográfica reforçada pelas lentes de Guy Veloso é de suma importância para a desconstrução do discurso do poder instituído. Ao citar o álbum da Belém urbanizada, pergunto: onde está o pajé que atendia atrás da estação ferroviária? Onde estão os negros que cantavam e dançavam o seu lundu na bela praça Batista Campos? As benzedeiras que atendiam no periférico bairro do Guamá saíram em alguma fotografia? A resposta para todas as indagações é direta: as manifestações de fé populares foram silenciadas pelo discurso da imagem.

Nas vésperas de completar seus vinte anos de uma vigorosa carreira, Guy Veloso dá corpo e luz para esse silêncio histórico na Amazônia e no Brasil: catolicismo popular, vale do amanhecer, santo daime, círio de Nazaré e candomblé são parte do seu repertório visual. Ao vê-lo fotografar, presenciei o forte elo entre o sujeito e seu objeto. Reinventando o título de uma das suas exposições: ele vivencia a febre da fé.

Fotografia: Guy Veloso


Fotografia: Guy Veloso

Causa-me certo estranhamento a recusa da publicação do trabalho de Guy Veloso no Canal Contemporâneo. Entendo a necessidade de foco, defendida pelos responsáveis pelo meio mas fico pensando se em pleno século XXI não pretendemos, ainda, silenciar determinados sujeitos... Com a resposta, o caro leitor.

Michel Pinho - Historiador e fotógrafo.

Um comentário:

Tanto disse...

Michel, adorei o texto claro e elucidativo. Demonstra tua opinião sem ser grosso ou rude, exatamente como deveriam ser todas as opiniões discordantes. E as fotos... Bem, as fotos são belas. Gostei muito do blog que não conhecia. Parabéns!